quarta-feira, 14 de abril de 2010

Estranhamento (Pt. 1)

O vento gelado toca meus cabelos molhados de forma violenta. Penso em voltar para pegar uma blusa, mas já estou atrasado demais e não posso mesmo perder esse emprego. O ônibus chega e eu me espremo no meio da multidão, um homem não consegue entrar e fica lá fora xingando o motorista – não o ouvi realmente, mas minha lembrança se sobrepõe à minha memória e, numa confusão de palavras e vozes que não existem, eu crio cenas e situações que muitas vezes me fazem misturar realidade e opinião.



Não consigo passar pela catraca, então fico na parte da frente do ônibus, que também está cheia. Uma mulher leva um carrinho de bebê enorme, o que nos espreme ainda mais. Não ouço e nem vejo o bebê, começo a imaginar que seria estranho se naquele carrinho não houvesse nada, se aquela mulher fosse louca e estivesse carregando um carrinho de bebê roxo e vazio pela cidade. A mulher então me olha nos olhos, tem um olhar estranho, como se fosse minha culpa do seu carrinho de bebê estar vazio; eu desvio o olhar, mas ela continua lá, firme, como se eu merecesse cada segundo de sua condenação.


Eu desço do ônibus ainda com uma sensação estranha, de culpa, pela possibilidade daquele carrinho estar vazio. Vejo um grupo de adolescentes fumando perto duma banca de jornal, começo a morrer de vontade de fumar, mas então o telefone toca mais uma vez – todos os dias, a caminho do trabalho, eu passo por essa banca de jornal. Na frente dessa banca tem um telefone público que sempre toca exatamente no mesmo horário que eu passo.


O telefone toca sem parar, eu começo a andar mais lentamente, meu coração bate cada vez mais rápido e eu esqueço de tudo que estava fazendo. Sinto que as pessoas ao meu redor me observam, como se eu devesse atender aquele maldito telefonema, como se todos os dias alguém quisesse falar comigo; mas quem ligaria todos os dias para um telefone público, no mesmo horário, e ainda querendo falar comigo? O telefone continua tocando, eu não sei o que fazer e então deixo cair minha carteira no chão, o barulho acaba e eu fico aliviado, quase agradecido.


Olho no relógio e vejo que estou atrasado de novo. Começo a andar mais rapidamente e finalmente chego ao trabalho, é uma loja de departamento no centro da cidade; o salário é uma bosta, mas é o melhor que eu posso conseguir. Meu patrão me olha nos olhos e eu abaixo a cabeça. Vou ao banheiro me trocar e passo a tarde inteira sentado na frente do computador, sem fazer absolutamente nada. No fim do expediente eu vou até o depósito e saio depois de meia hora, meu patrão me espera do lado de fora com dois seguranças, eles me levam para o andar de cima, para uma sala que eu nem sabia que existia. Fico um pouco nervoso, sinto que já sei o que vai acontecer. A sala é escura e tem uma mesa no centro. Eles me deixam lá por um tempo enquanto conversam do lado de fora, então os dois seguranças entram e me batem com força, primeiro no estômago, cabeça, cara, braço, perna... O sangue respinga um pouco no chão e eles dizem que eu deveria agradecer por ter sido tão pouco, que eu merecia apanhar muito mais pelo o que fiz. Meu patrão aparece com um vídeo na mão, coloca o vídeo no aparelho ligado a televisão e me mostra uma gravação feita nesse mesmo dia, no depósito.


-Agora é melhor você pedir as contas, entendeu?


Eu balanço a cabeça positivamente e volto para casa, quebrado.

3 comentários:

  1. Apaixono-me pelos teus textos.
    É estranho para mim ler o português com uma vertente brasileira, mas os teus textos superam isso.
    Parabéns, sinceramente.

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  2. cappa! yay, estás aqui! ora ora, fico à espera que escrevas então.

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