domingo, 4 de setembro de 2011

O Exílio


Estou em casa. Acordo assustado com o barulho da goteira que bate forte na pia da cozinha. Vou até o banheiro e ouço um zunido irritante vindo da sala. Vou comer um fruta, mas a fruteira tem duas laranjas podres, ensopadas com uma água que se formou do mamão que está quase todo consumido pelo tempo. Percebo que estou atrasado, minha boca está seca, mas posso beber a água do chuveiro para economizar tempo.
Meu estômago dói, acho que foi pela água do chuveiro – minha mãe sempre me dizia pra não beber água do chuveiro, ela tinha razão eu acho. Chego no restaurante e lembro que não sei quem vou encontrar. Sei que devia ter chegado as 15:30, mas são 16:10. O garçom me direciona até uma mesa perto do balcão do gerente, como se tudo já fosse programado. Um pianista muito bom toca algo que eu sei que não existe, tenho certeza; várias pessoas estão à volta dele e parecem felizes. O telefone toca várias vezes e ninguém atende. Eu olho para o relógio e já são 16:45, fico nervoso e enjoado. O telefone volta a tocar e ninguém atende; as pessoas parecem incomodadas e olham para mim. O barulho do telefone é mais alto que a música que o pianista toca – e o pior, é que na tentativa de competir com o som do telefone, ele bate mais forte nas teclas, o que incomoda mais ainda os ali presentes. O garçom vem me dizer que a ligação é para mim mas que não posso atender.
O que eu faço então?  Eu pergunto. Vá até a sala fechada número três e aguarde. Disse o garçom. Mas eu tenho que esperar aqui. Eu digo. Eu tenho ordens de meus superiores para que você saia daqui agora. Ele responde, já me indicando o caminho da sala.
Eu vou até a sala indicada. O pianista volta a tocar sua música e as pessoas voltam a ficar felizes com isso. Confesso que não gostei mais do garçom, ele parecia me olhar como se soubesse de tudo, como se eu fosse um ser inferior; mas ao mesmo tempo, sinto que ele tem razão e que tenho que aceitar isso de uma vez.
A porta da sala parece trancada, não tenho certeza, mas acho melhor não tentar abrir-la. Se ela estiver destrancada e eu abrir, posso cumprir meu dever estipulado pelo garçom que recebeu ordens superiores para tal; se eu tentar abrir-la e ela estiver trancada, isso pode desencadear uma série de infortúnios que me levarão a uma desgraça possivelmente fatal.
Quando vou voltar para minha mesa, a porta se abre. Um homem de terno e gravata sorri, com o mesmo sorriso desdenhoso do garçom – isso me deixa com receio. Esse homem fala para eu entrar na sala. Ele é o homem que eu deveria encontrar as 15:30 no restaurante.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Almoço-Aniversário Pt. 2

O Almoço-Aniversário começava às duas da tarde, era um compromisso. Entro no “Box” (acho engraçada essa palavra que usamos como referência para o lugar em que tomamos banho, só agora parei pra pensar que “Box”, na verdade é caixa, por isso, a partir de hoje chamo esse lugar de caixa)... Enfim, entro na “caixa” e ligo o chuveiro bem forte e gelado. Sempre adorei essa sensação da água bem pesada em cima de mim, acho que me lembra uma cachoeira, eu sempre gostei disso. Saio e como de costume, me enxugo fora da caixa molhando o banheiro todo. Depois o seco com minha toalha.

Olho no espelho e me sinto um merda. Minha barba é grossa, escura; meus olhos parecem cair mergulhados nos meus cabelos que estão longos demais, eu pego o pente e penso em colocar para trás, mas quem usa o cabelo assim costuma ter um emprego, então os deixo assim mesmo com a franja caindo nos meus olhos e se misturando com minhas sobrancelhas. Coloco uma camisa branca de manga curta, calça jeans e um tênis velho que é o único no meu armário. Saio de casa já meio atrasado, uma e meia no relógio da praça perto do meu apartamento, eu preciso correr. Chego no restaurante as duas e quinze, atrasado, suado, descabelado e com uma ereção matinal tardia, é aniversário da minha mãe e eu chego atrasado, merda!

O restaurante é espanhol, vamos comer paeja como todos os anos. O homenzinho que fica na frente indicando as mesas me pergunta se eu estou sozinho – e com um olhar de desconfiança que me deixa puto. Eu só sigo em direção a mesa em que vejo minha família sem dizer uma palavra, sinto os olhos dele me seguindo como um sensor, pronto pra chamar o segurança caso eu seja um andarilho atrevido. Na mesa tem seis pessoas: avó, avô,pai, tia solteira, irmã adolescente e seu namorado; eu chego aos poucos no meu lugar, todos continuam falando sem parar.

- Eu já disse que não estou comendo carboidratos!
- Mas carne de peixe não tem carboidratos minha filha.
- Cadê esse garçom? Minha coca ta fervendo!

Eu sento  perto da ponta, ao meu lado fica o lugar do pai, ele se aproxima e fala no meu ouvido:

- Sabia que você chegaria atrasado, sempre atrasado pra tudo nessa vida... Você tem certeza que deveria estar aqui?

Eu balanço a cabeça positivamente, mas não digo nada e nem olho nos olhos dele.

 - E cadê o presente da sua mãe? Não trouxe né?!... Tó aqui, comprei esses brincos pra você fingir que deu alguma coisa e ela não sentir tanta vergonha do próprio filho não ter dinheiro nem pra cortar o cabelo mais.

Eu peguei os brincos e enfiei no bolso, amassei um pouco o embrulho, mas que diferença isso faz?



sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Almoço-Aniversário Pt. 1

Era o aniversário da minha mãe. Eu abro os olhos e fico encarando o teto do meu quarto por um tempo, chove muito, é tudo cinza. Minha voz sai rouca ao telefone, o pai diz que o almoço-aniversário seria às duas horas da tarde - eu nem tinha confirmado minha presença ainda.
Ele deixa bem claro:

- É bom que você chegue no horário.

Disse isso com entonação maior em “você”.

- É bom que VOCÊ chegue no horário.

Sinto um gosto horrível na boca, uma mistura de vinho amanhecido com cerveja choca. Vou até a padaria e como um pão na chapa, mas não bebo nada; volto para casa ensopado e com a garganta seca. Lembro que há tempos não ouvia minha própria voz, uns bons meses antes de o meu pai ligar.
O almoço-aniversário me volta num pensamento rápido, mas gordo, junto com um monte de coisas que eu havia pensando antes.

MINHA MÃE

Eu conheci minha mãe com sete anos. Claro que eu sei que sai do ventre dela, não sou retardado , mas conhecer é uma coisa bem diferente de encontrar. Com sete anos ela me acordava de manhã, me vestia, me penteava e quando eu menos esperava , já era hora de dormir - minha mãe vivia por mim. Com sete anos eu conheci minha mãe. O ônibus da escola me buscava e me trazia nas quartas feiras, dia do rodízio para a placa do nosso carro.

Numa quarta-feira a professora teve que ir embora mais cedo, acho que o filho dele havia morrido ou algo assim, todo mundo voltou pra casa mais cedo, eu também. Eu fui subindo o elevador e lembro que sempre morri de vontade de apertar o último botão, o dezoito, mas lá era a cobertura, era alto demais e eu tinha sete anos. Quando cheguei no sexto andar estranhei um pouco, não tinha cheiro de comida, mas lembrei que eram dez e meia. Meu cérebro deve ter se acostumado a relacionar minha volta pra casa à fome, a rotina às vezes confunde a gente. Eu entrei pela porta da cozinha, passei pela sala de jantar e nada da minha mãe. O quarto dela e do pai tava trancado, eu fui pra sala ver desenho. Um homem pálido demais almoçou em casa e depois comeu sobremesa.

Meu pai voltou à noite, eu não abri a boca, minha mãe olhou pra mim com medo e eu gostei daquilo. Minha mãe era mulher do meu pai, minha mãe era mulher.

 (continua)