quarta-feira, 31 de março de 2010

O Homem da Meia Bege (Pt. 2)

Ele continua dormindo e em suas mão segura uma Bíblia. Começo a imagina-lo na Praça da Sé, pregando o Evangelho e voltando agora para casa, exausto, mas satisfeito consigo mesmo, como se assim encontrasse a absolvição de seus pecados, de sua vaidade extrema.


Me sobe então uma agonia, sensação velha que me consome dia-a-dia, das lembranças, do cheiro, do beijo daquela mulher! Eu tenho vontade de respirar, mas não consigo, meu peito não possui mais a capacidade de se expandir, meus pulmões endureceram num concerto absurdo de órgãos congelados pela brisa que vinha da janela, pelas palavras que eu ouvi com todo rancor, ódio e paixão. Sinto que adormeci, mas que ainda estou acordado, penso que enlouqueci, que não há homem, nem meia bege, nem trem, nem nada. Então me sobe finalmente um suspiro gordo, que me faz arregalar os olhos e soltar um ruído de alívio seguido de um “graças à Deus!” meio abafado pelo barulho do trem nos trilhos.

O homem continua lá sentado, mas está acordado, olhando para mim, como se me julgasse morto, como se seus olhos não avistassem mais um ser humano à sua frente, mas um bicho ou nem isso; esse olhar sobre mim é nauseante, me faz lembrar dela, da minha vida, da minha capacidade de escolher o sofrimento. Levanto da cadeira e vou para outro vagão, olho para o homem procurando me despedir, mas ele continua parado, olhando agora para a cadeira vazia à sua frente.

Desço na próxima estação e pego um ônibus para meu apartamento. Tento chamar o elevador mas depois de alguns minutos lembro que está quebrado.Penso seriamente em dormir no saguão ao invés de subir seis andares, mas a idéia é absurda demais, mesmo para mim. Escovo os dentes, bebo água e lavo meu rosto. O suor que escorre da minha cara é grosso, misturado com a poluição dos carros, ônibus e cigarros. Tenho a sensação de que meu dia continua grudado em mim, meu trabalho, a fuligem, nada sai da minha cara, esfrego tanto que fica em carne viva, sangra por toda a pele e por fim desce pelo ralo, vai embora pro esgoto do chuveiro. Minhas pernas e meus braços continuam no trabalho, no trem vazio, jogo-os na cama e me deito agitado ainda, pesando demais.

Fecho os olhos e tento ver apenas o escuro, tento adormecer, mas gradativamente o preto vira branco e depois bege; o preto cria forma e vira aquele homem no trem, aquele pastor dos diabos que não me sai da cabeça, que me inferniza e não me deixa dormir!

Acordo atrasado, já são sete da manhã. Lavo o rosto e saio com a mesma roupa que estava no dia anterior. Tenho que pegar o trem, mas decido ir de ônibus, que demora mais, mas é menos lotado; além disso, lá eu tenho certeza de que não encontrarei aquele homem, pastor ou seja lá o que ele for.

terça-feira, 30 de março de 2010

Cíclico

No meu peito
Se cria tempo a tempo
Uma agonia sem jeito
Que me consome por inteiro
Me causa dor e sofrimento
E ainda me faz sorrir


Tempo a tempo
Essa dor me faz eleito
E cansado eu me contento
Em forjar um sentimento
Que me torna incompleto
E me faz morrer de rir


Eu tenho medo
De causar um ferimento
No que antes era certo
E agora é imaginação


E quase perco
A vontade e o fermento
Da massa e do ungüento
Que me trazem consolação


O cimento do meu peito
Guarda mais que um aumento
Suja mais o que é perfeito
É escracho e alimento
E da minha loucura faz paixão


Perco o sono
Afundo os olhos
Minha tarde passa apagada
Minha noite é solidão

segunda-feira, 22 de março de 2010

O Homem da Meia Bege (Pt. 1)

Pego o último trem para casa, corro até o último vagão, que é sempre o mais vazio e me sento na primeira cadeira que vejo. Olho no relógio e já é meia noite e dez - esse trem sempre atrasa e isso me irrita muito. Havia ficado até mais tarde no trabalho, precisava mesmo ir para casa dormir. O barulho do motor anuncia finalmente a saída da estação, começo a pensar em casa, na janta posta e na minha cama, cheirando a cigarro e vinho – essas lembranças me fazem sentir cada vez mais um ódio daquela mulher.


Reparo então num homem sentado à minha frente. Ele aparenta ter uns quarenta e sete anos e tem um olhar pesado como o meu – sempre aparentei ser mais velho do que sou, costumo dizer que é culpa da minha barba precocemente grossa ou do meu andar rígido... Mas o culpado mesmo é meu olhar. O que é a maturidade se não a perda da inocência?


O homem então percebe que estou olhando para ele e me encara por um momento. Volto meus olhos para o chão e começo a observar seus sapatos: são pretos, mas com um detalhe dourado dos lados, bem perto da língua; começo a pensar que um homem daqueles não parece vaidoso o suficiente para comprar sapatos com detalhes dourados dos lados, deduzo então que foram dados de presente e que ele os usa apenas por educação, apesar de os achar exageradamente chamativos – talvez fosse por educação que eu houvesse aguentado desaforos daquela mulher por tanto tempo sem dizer nada que partisse verdadeiramente do meu peito. Tenho raiva dessa hipocrisia de costumes que nos é ensinada para o convívio social desde que nascemos até o último sutil e civilizado suspiro da morte.


O homem usa um paletó azul marinho, uma camisa branca e uma calça preta, reparo então nas suas meias bege. O conjunto me parece normal, apesar dos sapatos com detalhe dourado dos lados, mas a meia contradiz tudo o que eu havia imaginado daquele homem, as meias provocam naquele homem um desastre pitoresco demais!... - Talvez ele fosse vaidoso sim e resolveu usar meias bege com uma calça preta apenas para chamar a atenção de alguém que o observasse.


Lembrei que ele havia entrado subitamente no trem, bem na hora do apito que fechava as portas, isso denuncia uma pressa incomum: por que um homem daqueles chegaria no último momento antes de sair o último trem da estação?


Percebo então que cheguei à minha estação, vacilo por um instante ao me levantar e sento novamente, avisto um detalhe naquele homem que havia passado despercebido por mim, começo a pensar em ficar, mas lembro que estou cansado e morrendo de fome. O apito que fecha as portas é tão rápido que eu nem ao menos posso me decidir. O tranco do motor me assusta e eu esqueço do cansaço pra observar um pouco mais aquele homem de meias bege.