segunda-feira, 22 de março de 2010

O Homem da Meia Bege (Pt. 1)

Pego o último trem para casa, corro até o último vagão, que é sempre o mais vazio e me sento na primeira cadeira que vejo. Olho no relógio e já é meia noite e dez - esse trem sempre atrasa e isso me irrita muito. Havia ficado até mais tarde no trabalho, precisava mesmo ir para casa dormir. O barulho do motor anuncia finalmente a saída da estação, começo a pensar em casa, na janta posta e na minha cama, cheirando a cigarro e vinho – essas lembranças me fazem sentir cada vez mais um ódio daquela mulher.


Reparo então num homem sentado à minha frente. Ele aparenta ter uns quarenta e sete anos e tem um olhar pesado como o meu – sempre aparentei ser mais velho do que sou, costumo dizer que é culpa da minha barba precocemente grossa ou do meu andar rígido... Mas o culpado mesmo é meu olhar. O que é a maturidade se não a perda da inocência?


O homem então percebe que estou olhando para ele e me encara por um momento. Volto meus olhos para o chão e começo a observar seus sapatos: são pretos, mas com um detalhe dourado dos lados, bem perto da língua; começo a pensar que um homem daqueles não parece vaidoso o suficiente para comprar sapatos com detalhes dourados dos lados, deduzo então que foram dados de presente e que ele os usa apenas por educação, apesar de os achar exageradamente chamativos – talvez fosse por educação que eu houvesse aguentado desaforos daquela mulher por tanto tempo sem dizer nada que partisse verdadeiramente do meu peito. Tenho raiva dessa hipocrisia de costumes que nos é ensinada para o convívio social desde que nascemos até o último sutil e civilizado suspiro da morte.


O homem usa um paletó azul marinho, uma camisa branca e uma calça preta, reparo então nas suas meias bege. O conjunto me parece normal, apesar dos sapatos com detalhe dourado dos lados, mas a meia contradiz tudo o que eu havia imaginado daquele homem, as meias provocam naquele homem um desastre pitoresco demais!... - Talvez ele fosse vaidoso sim e resolveu usar meias bege com uma calça preta apenas para chamar a atenção de alguém que o observasse.


Lembrei que ele havia entrado subitamente no trem, bem na hora do apito que fechava as portas, isso denuncia uma pressa incomum: por que um homem daqueles chegaria no último momento antes de sair o último trem da estação?


Percebo então que cheguei à minha estação, vacilo por um instante ao me levantar e sento novamente, avisto um detalhe naquele homem que havia passado despercebido por mim, começo a pensar em ficar, mas lembro que estou cansado e morrendo de fome. O apito que fecha as portas é tão rápido que eu nem ao menos posso me decidir. O tranco do motor me assusta e eu esqueço do cansaço pra observar um pouco mais aquele homem de meias bege.

Um comentário:

  1. Como é que é possível escreveres isto? Sabe tão bem ler estes textos, Cappa.
    Revejo-me um bocado neles, sabes?
    Acho que também tenho esse olhar pesado de que falas. Também dizem que pareço mais velha do que sou.
    Amores, tanto paradoxais como não paradoxais, são muito complexos.
    É, tens razão. As egocentridades são o que mostram realmente quem somos.
    Por favor, Cappa, continua esta história! *

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